quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Reflexões sobre adoção por homossexuais

Amigos: postei aqui uma antiga entrevista, concedida em 2007 para estudantes de psicologia e que contém algumas reflexões válidas para se pensar na adoção por homossexuais. As perguntas refletem algumas dúvidas bastante comuns à maioria da população ou até mesmo ao homem que é pai e homossexual e que pensa adotar; vale a pena rever essa entrevista.

1. Existe diferença no desenvolvimento afetivo de uma criança adotada por um casal homo afetivo e uma criança adotada por um casal hetero afetivo? Se existir, qual é a diferença?
Resposta: Não existem diferenças em crianças filhas de casais heterossexuais e homossexuais. Investigações nesse sentido podem ser tendenciosas e sugerem preconceito.
Para a psicologia o desenvolvimento da afetividade da criança não tem relação causal com a parentalidade, quer seja homossexual ou heterossexual, isto é, o tipo de parentalidade não é predeterminante de aspectos desenvolvimentais.
O desenvolvimento está associado a aspectos, educacionais, sócio-ambientais (micro ou macro), além dos familiares, individuais, físicos e psicológicos (fatores de risco engendram maior vulnerabilidade; os protetores engendram resiliência).
Para uma criança crescer e se desenvolver de forma adaptada, integrada e harmônica ela precisa de bons cuidadores, atentos às suas necessidades. Mesmo quando as condições externas são desfavoráveis existem aspectos de resiliência que podem permitir um desenvolvimento adaptado.

2. Qual seria o problema maior que uma criança adotada por um casal homoafetivo enfrentaria, sabendo que vivemos em um país preconceituoso?
Resposta: O problema que a criança adotada enfrenta está geralmente associado à sua própria história de rejeição, abandono, maus tratos nos primeiros meses e anos de vida, que são cruciais (risco que a torna vulnerável) para seu desenvolvimento afetivo-emocional e físico.
Além deste aspecto individual básico, outras questões entram em jogo, como a adoção mais tardia, a vivência em abrigos, a origem sócio-econômica baixa. Apesar do grande número de crianças vivendo em risco, sendo negligenciadas, poucas são as realmente disponíveis para adoção no Brasil e as adotadas por gays seguem esse perfil.
Quem adota é o/a homossexual solteiro/a, não o casal, visto que não existe casamento gay e mesmo em países onde existe não é comum o casal homoparental adotar, apenas um é o pai/mãe responsável.
As experiências referidas pelos pais gays adotivos são exatamente as mesmas que as de pais heterossexuais separados. Em geral quando a adoção é feita com a criança mais nova os problemas podem ser menores, além de facilitar os vínculos. O pai pode desenvolver sua forma de cuidar à medida que a criança demanda e assim construir juntos uma relação que atenda aos cuidados necessários.
O convívio da criança com a diversidade de arranjos familiares (incluindo aqui o relacionamento homoafetivo) pode promover um desenvolvimento mais adaptado e favorecer a flexibilidade e tolerância. Uma educação que respeita a diversidade e os direitos humanos promove uma cultura de paz e de equidade.
A revelação para os filhos da homoafetividade por parte do pai gay adotivo que é assumido, que se aceita e se respeita, pode ser mais tranqüila também. Se a revelação acontecer de forma natural e mais cedo pode ser melhor absorvida pela criança. Caso o pai opte por não se revelar e a criança venha a saber por terceiros há o risco da confiança ficar abalada; segredos são prejudiciais às relações familiares.
O ambiente homofóbico e preconceituoso é a principal questão que uma criança adotada por pai homossexual terá que enfrentar e aprender a lidar. O fato dela ficar exposta na mídia pode também não ser desejável principalmente na adolescência. O suporte necessário para que a criança passe por essa situação deve vir de todo entorno e rede de apoio social, seja a escola, os familiares e amigos dessa criança, não só o pai.


3. A criança adotada por um casal homo afetivo pode vir a ter uma tendência homossexual por ter pais assim?
Resposta: Não dá para “ensinar” homossexualidade, assim como não se ensina heterossexualidade. A sexualidade não está associada a interferências horizontais em nosso desenvolvimento, se assim fosse não haveria filho gay na família heterossexual. Os filhos de famílias gays podem desenvolver orientação sexual hetero ou homo.

4. A criança adotada por um casal homo afetivo reclama que precisa de um carinho de uma mulher, por exemplo?
Resposta: Não é comum um casal homoafetivo adotar, apenas um é o pai adotivo. As famílias homoafetivas se cercam de uma rede protetora, que é a “família de escolha” formada por parentes e amigos muito próximos que são receptivos e aceitam sua homoafetividade. Essa rede supre a criança de todo tipo de relação e favorece trocas com ambos os sexos.
Mas é comum uma criança adotada por pai gay (que já não tinha mãe nem pai num abrigo), perguntar se não vai ter também uma mãe. É também comum o pai responder que não se casará com mulher, mas que outras mulheres de sua relação podem querê-la tão bem como se fosse sua mãe. É importante lembrar que “desejar ter a mãe” é natural numa criança adotada por um pai solteiro, visto que ela de fato está afastada de sua mãe biológica. É também comum uma criança que vive só com sua mãe solteira “querer um pai”, visto que ela está afastada dele (não importa aqui a sexualidade e sim o sentimento de privação do parental do qual se está afastado).

5. A faixa etária de uma criança adotada por um casal homo afetivo pode vir a ter repercussões diferentes no seu desenvolvimento? De que forma?
Resposta: Sim, como mencionamos anteriormente quanto mais nova a criança melhor a adaptação à nova realidade familiar. A criança que teve necessidades, físicas e emocionais não supridas, que passou por privações até ser adotada, pode ter mais dificuldade de se adaptar, entretanto a relação não é causal, devem ser considerados outros aspectos, como os de resiliência, que falam a favor de uma adaptação harmônica, mesmo levando em conta circunstâncias adversas ao longo da vida.

6. Quais as maiores queixas que as crianças ou os pais trazem na consulta? (se o psicólogo atender crianças adotadas)
Resposta: As dificuldades do pai em sua maioria dizem respeito às situações referidas nas respostas anteriores. Ou seja, vai depender de quem é essa criança, antes de ser adotada, como ela foi reagindo às diversas situações pelas quais passou ao longo de sua existência. O desenvolvimento é ininterrupto, o ser humano é influenciado e resulta das associações das experiências que vive e de como as enfrenta, num dado momento histórico, numa dada cultura. Por vezes uma situação de extrema privação é muito difícil para uma criança e para outra, nem tanto, e sua vida posterior à adoção pode sofrer maior ou menor impacto desse período de privação.
Algumas situações que são trazidas pelos pais também versam sobre o tema revelação, de como devem conversar com a criança sobre sua homoafetividade. Essas entretanto são situações bastante pontuais e mais simples de serem resolvidas.

7. Você acha que as crianças adotadas por casais homo afetivos tem dificuldade no processo de socialização? Como?
Resposta: As pesquisas (revisões bibliográficas) não referem esse tipo de dificuldade e também minha prática além da pesquisa de doutorado não apontaram isso. Ao contrário as crianças podem crescer aceitando melhor a diversidade, ser mais flexível, tolerante e aprender a lidar com o ambiente, por isso ser mais adaptada.
Existe sim o ambiente homofóbico desfavorável que pode expor uma criança/jovem a riscos (evasão escolar, adoecimento, adesão a substancias químicas), dependendo da vulnerabilidade (como condições internas e externas protetoras ou estressoras). Quando esse mesmo meio é protetor (como escola e família que trabalha a diversidade) pode suprir a criança e família do necessário suporte para enfrentar a homofobia.

8. A auto-estima da criança adotada por casais homo afetivos pode ser afetada?
Resposta: Não sabemos o que você define como auto-estima, entretanto consideramos que nada na personalidade ou comportamento de alguém seja passível de ser afetado por um evento apenas (externo ou interno). Tudo na personalidade depende de contextos amplos, não passíveis de serem enumerados de forma genérica, porém podem ser compreendidos quando se contextualiza cada caso.
Por exemplo, na história de um pai que adotou sua filha com 3 anos e que revelou sua homoafetividade quando ela estava com 5 anos. Sua forma de abordar essa situação, de ser sincero com sua filha desde pequena reforçou sua segurança, tranqüilizou-a. Hoje com 14 anos ela demonstra que está preparada para lidar, aceitar, compreender, situações adversas. Não havendo indícios que possam ser associados àquilo que alguém possa chamar de “baixa-estima”.

9. Para o casal homo afetivo é mais difícil o processo de adoção? Por quê?
Resposta: Para pessoas que se relacionam homoafetivamente o fato de simplesmente “serem diferentes quanto à forma de se envolverem afetiva e sexualmente” embora sejam pessoas exatamente iguais a todas as outras pessoas, já é um aspecto que trás singularidades à adoção.
Essas singularidades podem ser bastante positivas em muitos casos, mas na forma legal podem se traduzir por dificuldade.
Um exemplo disso é que no Brasil a adoção pelo casal não é legalizada, visto que não há o reconhecimento do casal do mesmo sexo. Assim a adoção é feita por solteiro/a. Temos visto na mídia que alguns poucos casais homossexuais estão obtendo o direito à adoção o que tem gerado jurisprudência favorável.


10. Você percebe a busca de ajuda psicológica por parte de pais adotivos que são casais homo afetivos? Como isso ocorre? É freqüente?
Resposta: A busca de ajuda psicológica é indistinta para quaisquer pais que adotam; não foi observado nenhum tipo de diferença, as adoções em si são processos complexos para pessoas solteiras ou casadas, e a adaptação é necessária para qualquer pessoa que se propõe adotar.
É indiferente para um psicólogo se esses pais são ou não homossexuais. O aspecto mais importante é que as relações que se iniciam possam ser elucidadas, esclarecidas, sejam elas quais forem. A busca de auxílio para essas adoções é sempre indicativo de boa disposição para fazer parte do processo como pai/mãe adotivo.
Existem grupos de adoção que trabalham essas questões dessa forma indistinta e têm tido um resultado bastante positivo.
Vamos repetir: a homoafetividade não se constitui um problema para a relação entre pais e filhos adotivos. O problema maior é a própria adoção e a relação de cuidado e afeto que se inicia de forma mais ou menos tardia, depois da criança já ter passado por muitas situações adversas.

11. A criança por estar em processo de desenvolvimento, e ter entre 6 e 10 anos (latência), pode vir a ter atitude preconceituosa em relação ao casal que a adotou?
Resposta: Qualquer atitude é possível numa criança nessa fase de adolescência. As que são adotadas passam por situações às vezes mais ou às vezes menos difíceis, as dificuldades dependem de aspectos já referidos de vulnerabilidade. Assim é possível uma criança negra, filha de pais negros não aceitar sua origem, se envergonhar, renegar e sofrer por isso.
A criança que é filha de pai ou mãe que tem envolvimento homoafetivo pode também momentaneamente não aceitar isso e se envergonhar, renegar, sofrer. Mas o sofrimento está associado às atitudes de preconceito de seus pares. Ela pode escutar ofensas aos homossexuais, e indiretamente associar isto a seu pai ou mãe e por lealdade ao amor que lhes tem acaba por se sentir agredida, ameaçada e envergonhada. É até comum um jovem não abrir que é filho/a de pais homossexuais devido à esse fator “vitrine”.

12. As crianças em acompanhamento terapêutico questionam sobre a sexualidade dos pais? De que forma isto se dá?
Resposta: Não há referência na literatura revisada e na nossa prática desse tipo de situação. Mas podemos entender que num determinado momento do desenvolvimento infantil qualquer coisa que se refere a “sexualidade dos pais” pode ser tratada por qualquer criança e pais com maior ou menor grau de repressão/abertura. As crianças adotadas não devem fugir disso, embora isso possa não se configurar um fator muito relevante.

13. Como é a realidade vivida por crianças na faixa etária de 6 a 10 anos quando adotadas por um casal homo-afetivo?
Resposta: Dentro de nossa concepção, de acordo com o que já assinalamos e de acordo com a literatura por nós revisada que aborda esse aspecto não existe nenhuma especificidade diferente relacionada à homoafetividade e que desqualifique o desenvolvimento das crianças, ao contrário.
A adoção nessa faixa pode ser em si mais desafiadora para pais ou mães heterossexuais e homossexuais.

14. Uma criança adotada na faixa etária de 6 a 10 anos pode vir apresentar dificuldades no desenvolvimento cognitivo?
Resposta: Vide acima. Nada do desenvolvimento cognitivo pode ser associado a adoções, nada é simplesmente causal; será que alguém pode seguramente garantir que se a criança não fosse adotada nessa faixa etária, se continuasse no abrigo estaria livre de supostos problemas cognitivos?

15. E sobre o preconceito? Você acredita que estas crianças podem vir a ser alvo de preconceito por parte da comunidade que convivem?
Resposta: Como já respondido existe o risco do excesso de visibilidade que pode não ser protetor para o desenvolvimento de crianças. Filhos de artistas, de pessoas famosas correm o mesmo risco. A homofobia não é favorável para o desenvolvimento de crianças, mesmo as que vivem com os pais biológicos. Um ambiente pode ser protetor quando promove o convívio e a aceitação da diversidade, sempre, para qualquer idade, ou qualquer momento da vida do ser humano.